26 de novembro de 2009

Projeto de lei cria polêmica entre categorias da saúde

Especialistas acham que definição estrita de atribuições não é de interesse da população e veem corporativismo


Conselho de médicos diz que lei preencherá lacuna ao regulamentar o exercício da profissão no país; outras categorias contestam

CLÁUDIA COLLUCCI
MÁRCIO PINHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Médicos e outras categorias da área da saúde vêm travando uma queda-de-braço desde o último dia 21 de outubro, quando a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei conhecido por "ato médico" e que agora tramita no Senado.
Pelo projeto, apenas médicos estão autorizados a diagnosticar doenças e prescrever tratamentos. As outras 13 categorias da área da saúde, não.
Fisioterapeutas, biomédicos, enfermeiros e psicólogos, entre outros, afirmam que perderão sua autonomia de atuação caso o projeto seja aprovado e sancionado pelo presidente Lula.
A versão é rebatida pelo CFM (Conselho Federal de Medicina). O órgão alega que a lei preencherá uma lacuna ao regulamentar o exercício da medicina, definindo os atos privativos dos médicos e resguardando as competências específicas das 13 profissões.
No entanto, para Gil Almeida, presidente do Conselho de Fisioterapia do Estado de São Paulo e integrante do movimento "Ato Médico Não", esse "resguardo" é vago e vai gerar discussão na Justiça.
Ele afirma que a lei proposta engessará o desenvolvimento das profissões e poderá dificultar o acesso à saúde caso seja instituída uma triagem médica.
Pesquisadores da área da saúde pública entendem que é legítimo o projeto definir as competências exclusivas dos médicos, mas veem corporativismo. "Para os idosos, os doentes crônicos, é impossível a gente pensar em cuidado integral sem a colaboração de uma equipe multidisciplinar", diz Lígia Bahia, professora de saúde pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Na avaliação de Luís Eugênio Fernandes de Souza, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, as disputas são legítimas, mas o que está em jogo é uma reserva de mercado. Ele diz que não é interesse da sociedade nem viável economicamente a definição estrita de atribuições para cada profissão.
"Temos uma série de programas de saúde pública, como o da hanseníase, para os quais existem protocolos bem definidos em que outros profissionais da saúde podem fazer, inclusive, a prescrição de medicamentos. Se o projeto proíbe isso, vai criar um obstáculo. E os pacientes de cidades que não têm médico? Deixarão de ser atendidos?", questiona.
Souza lembra que há uma má distribuição de médicos no país. "No interior da Bahia, tem prefeitura que precisa de médico, oferece salário de R$ 17 mil e não encontra profissional."
Na opinião do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Erickson Gavazza Marques, a prioridade deve ser sempre o atendimento à pessoa. "Nosso objetivo não é ser guardião de profissão nenhuma. Se o médico não é capaz de prestar determinado serviço, não há razão para que outros profissionais não possam prestar a assistência desde que isso esteja bem regulamentado."

Falsa polêmica
Segundo o presidente do CFM, Roberto d'Ávila, "no mundo todo", o que caracteriza a profissão médica é o diagnóstico e o tratamento de doenças. "É só isso que queremos garantir. Está no senso comum, na história da medicina. O resto é falsa polêmica. Não há nada de corporativismo."
Ele diz que em relação aos programas de saúde que envolvam doenças crônicas -em que enfermeiros prescrevem remédios, por exemplo-, nada vai mudar. "O paciente só precisa fazer o diagnóstico e receber a primeira receita do médico."
Ávila afirma que há gestores públicos que vêm delegando competências médicas a outros profissionais para baratear o custo da saúde. "Há equipes de saúde sem médicos, onde enfermeiros e outros profissionais estão fazendo diagnósticos, prescrevendo. Isso é inaceitável. Lutamos por equipes completas, multidisciplinares, onde cada um tenha sua função específica", diz ele.

PONTOS POLÊMICOS

1) Diagnóstico e tratamentos


COMO É HOJE
>>Feito pelos médicos e também por outros profissionais

COMO PODE FICAR
>> Só médicos poderão fazer

2) O que caberá às outras categorias

>> O artigo 4º prevê que não são privativos dos médicos diagnósticos do que não é doença. Ou seja: psicológico, psicomotor etc. Diz ainda que "são resguardadas as competências específicas" das outras profissões. Críticos dizem que isso é insuficiente para a autonomia

3) Serviços médicos

>> Terão de ser chefiados por um médico

Fonte: Projeto de lei do "Ato Médico"

Frases

"Há equipes de saúde sem médicos, onde enfermeiros e outros profissionais estão fazendo diagnósticos, prescrevendo. Isso é inaceitável."
ROBERTO D'ÁVILA
presidente do CFM

"Para idosos e doentes crônicos é impossível a gente pensar em cuidado integral sem uma equipe multidisciplinar"
LÍGIA BAHIA
professora da UFRJ

a favor

Para médico, lei protegerá a sociedade

DA REPORTAGEM LOCAL

Para o vice presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Carlos Alberto Fernandes Ramos, a regulação é positiva para a população pois irá garantir que, quando o assunto for uma doença, o atendimento seja feito por um profissional que estudou a fundo esse tema: o médico.

FOLHA - Por que o projeto é necessário?
CARLOS ALBERTO RAMOS -
São 14 as profissões de saúde e só uma não está regulamentada: a medicina. Esse projeto vai dizer as competências do médico, as exclusivas e as que pode fazer como os outros.

FOLHA - Que benefício traz?
RAMOS -
Isso tem que ser feito para proteger a sociedade de eventuais inescrupulosos que realizem atos específicos da medicina. Ou ainda porque o médico estudou de forma extensa e mais aprofundada as doenças, seus efeitos, tratamentos, interações medicamentosas etc.

FOLHA - As outras categorias são marginalizadas?
RAMOS -
O projeto não as torna subalternas. Elas deverão apenas se ater aos limites citados por suas próprias leis. O médico não sabe fazer trabalhos de outras áreas e não vamos interferir nisso.

FOLHA - Essas leis são antigas, genéricas?
RAMOS -
Às categorias compete atualizá-las.

FOLHA - E quanto à chefia de serviços médicos?
RAMOS -
Estamos falando de serviço médico, não de saúde. Um médico na chefia resguarda o cumprimento do Código de Ética.

contra

Psicóloga diz que projeto é retrocesso

DA REPORTAGEM LOCAL

O projeto de lei representa um retrocesso pois vai contra o princípio da integralidade das diferentes profissões da área da saúde, segundo a diretora-secretária do Conselho Federal de Psicologia, Clara Goldman Ribemboim.

FOLHA - Como vê o projeto?
CLARA RIBEMBOIM -
Ele limita a autonomia das profissões e as transforma em ilhas. Preconiza que o diagnóstico e a prescrição terapêutica são prerrogativas exclusivas do médico. É um retrocesso e coloca em risco o cuidado integral à saúde preconizado pela Constituição federal para o SUS.

FOLHA - Há uma ideia de que a medicina é superior?
CLARA -
Existe uma visão de supremacia do saber médico em relação às outras. Porém, cada profissão traz sua colaboração na promoção da saúde, e o médico sozinho não domina todo o conhecimento.

FOLHA - Os médicos poderiam exercer funções características das outras profissões?
CLARA -
O que está em jogo não é o fato de os médicos exercerem as outras profissões. O que esse projeto visa é o monopólio do encaminhamento e da chefia dos serviços. Vai atravancar o processo de atendimento e teremos uma falência do SUS.

FOLHA - E quanto à chefia dos serviços apenas por médicos?
CLARA -
Os serviços médicos não são serviços onde só o médico atua. Temos exemplos na atenção básica de serviços multiprofissionais chefiados por diferentes profissionais.

ANÁLISE

Médicos não criaram todas essas restrições

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É verdade que, em relação ao projeto original, de 2002, a atual proposta de regulamentação do ato médico é quase republicana: psicólogos, dentistas, fonoaudiólogos etc. não estão mais impedidos de fazer os diagnósticos necessários à sua profissão. Não obstante esse significativo avanço, o PL nº 7.703/06 permanece escandalosamente corporativista.
Apenas a ânsia por tentar estabelecer a maior reserva de mercado possível explica a existência de dispositivos que tornam a colocação de piercings e a aplicação de tatuagens atos privativos de médicos.
Foram com tanta sede ao pote que produziram uma piada involuntária, ao tornar o sexo uma zona restrita: segundo o art. 4º, pár. 4º, III, "a invasão dos orifícios naturais do corpo" é prática exclusiva da classe.
Na mesma linha de irrazoabilidade vai o art. 5, que proíbe não médicos de chefiar serviços médicos ou de lecionar disciplinas médicas. Dependendo de como a norma for interpretada, inviabiliza-se a função de administrador hospitalar.
Diga-se em favor dos médicos que não foram eles que criaram todas essas restrições. Eles só reproduziram dispositivos constantes das regulamentações profissionais das categorias que agora se queixam do corporativismo médico.
O problema, no fundo, são as raízes fascistas que permeiam a sociedade brasileira. As pessoas não se veem como cidadãs de uma República, mas como representantes de um segmento social que seria detentor de direitos naturais. O que se busca é inscrever em lei as reivindicações decorrentes desses "direitos" e esperar que o Estado as implemente. Viramos o país das corporações.

Folha de São Paulo - Caderno Saúde
São Paulo, 23 de novembro de 2009

Um comentário:

  1. Não pertenço a nenhuma categoria profissional, e sou leiga no assunto, mas me recuso terminantemente ser atendida ou diagnosticada por psicólogo, está categoria sim é corporativista, fazem reserva de mercado em diversas áreas que não é da conta deles. Negam a existência de alguns trantornos relacionados na CID,vêem a educação de forma ultrapassada, impedindo que avanços científicos chegem nas escolas. Eu não confio minha saúde mental ou de algum ente querido a profissionais desta categoria! Eu me nego, e se algum deles insistir comigo entro na justiça, psicologo não é médico, além do que não vejo a contribuição destes para diminuir o sofrimento humano sob nenhum aspecto. Pelo contrário vejo muitos profissionais desta categoria fazendo muitas pessoas sofrer mais do que já sofrem, com suas manias de ser donos da verdade.
    Desculpem,mas insisto Psicólogo não é médico. A antipatia pela catergoria foi causada por alguns colegas de profissão que andam falando demais...

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